Quando um DVD de música é bom demais, a sua autoria não se pode restringir aos artistas/sujeitos do objecto. E quando assim é, o mentor por trás das câmaras merece a divisão dos louros na lombada do produto. É o caso do fascinante documentário de 70 minutos "Miroir Noir". O DVD é sobre os Arcade Fire mas não é só dos Arcade Fire. É também do seu realizador, Vincent Morisset.
Se há banda visualmente interessante que merecia ter DVDgrafia, já se sabia, ela chamava-se Arcade Fire. A forma individual como cada um dos sete membros da banda se expressa em palco, contribuindo para a ribalta não se limitar ao protagonismo do líder (no caso, Win Butler), é matéria fascinante para qualquer realizador. O curioso e o invulgar desta banda é ver que cada um desses contributos, ao seu estilo, se dirige para uma coesão militarizada que recruta, muito voluntariamente, cada membro do seu público para o acto épico da banda. Não são só os sete ou oito músicos em palco a cantar em uníssono; os coros dos Arcade Fire estão numerados segundo a lotação do recinto onde tocam.
Mesmo se se usasse um método quadrado de se filmar apenas o que se passa em palco, os resultados finais nunca poderiam sê-lo porque a banda é só por si um caso de estudo e de catarse. Porém, e como seria de esperar, Vincent Morisset e os Arcade Fire quiseram elevar a fasquia e procuraram um ângulo completamente diferente para Miroir Noir, bem mais exigente.
O documentário é um medley de mais de uma hora, de recortes, que circula à volta da música dos Arcade Fire, em especial de todo o álbum "Neon Bible". O DVD é um carrossel em rotação contínua que apanha bocados soltos das 11 músicas do segundo álbum da banda de Montreal nas mais variadas situações: a gravação da vocalização de Win Butler no exterior da igreja que os Arcade Fire compraram ('Keep the Car Running'); 'Ocean of Noise' cantado por Win Butler e a sua mulher Régine Chassagne numa suíte do hotel com panorâmica para uma cidade estrelada por milhares de luzes; 'Neon Bible' tocado num elevador por todos os apertadinhos músicos do grupo, com Richard Reed Parry a fazer percussão com o rasganço de uma revista; ou o final arrebatador de 'No Cars Go' num coliseu qualquer onde apetecia estar. A multiplicação de cenas insólitas, que estimulam os sentidos todos e um mano-a-mano entre imagens e sons, faz de "Miroir Noir" a mais bela ode a um álbum que um filme já fez.
Mas despreocupem-se os fãs mais acérrimos do álbum de estreia "Funeral", o idílio de "Miroir Noir" também passa vista a alguma da colheita dessa obra-prima do indie-rock (como 'Haiti', 'Power Out' ou 'Rebellion (Lies)', e não só ('Cold Wind', composto para a série de TV "Sete Palmos de Terra", sonoriza uma das travessias de asfalto do filme).
Há momentos em que desejamos não ouvir um som tão abafado naquela cena; em que rogamos pragas contra aquele corte abrupto da nossa parte preferida daquela música; ou que lamentamos não ver melhor determinado performer numa certa interpretação ao vivo. São pequenas contrariedades de uma opção visual mais oblíqua que nos dá o essencial com muito mais clareza: as vibrações enérgicas da banda e a força nuclear do harmonioso casal Win Butler & Régine Chassagne em todas as decisões dos Arcade Fire.
"Miroir Noir" é um deslumbramento sonoro e visual que dá a Vincent Morisset aval de cineasta. E que eterniza uma fase recente de hiper-criatividade da banda, que se testa a si mesma com interpretações nos mais variados contextos (da rua ao elevador, da arena de uma sala à capela). Grandioso.
Artigo publicado no site Cotonete.
quinta-feira, 7 de maio de 2009
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