domingo, 13 de fevereiro de 2011

Primeiras excitações de 2011


PJ Harvey, Let England Shake
Vem aí um texto opinativo, prepara-se mais uma vez a caçadeira dos rótulos. Mas desta vez a missão é difícil: é um artigo sobre PJ Harvey. Pior (melhor), "Let England Shake" dá-nos - num temporal que muda a morfologia toda que lhe conhecíamos - uma metamorfose mais radical do que é normal na grande camaleoa do indie (ou seja lá o que isso for).


O alvo dos rótulos fica desfocado. E anda outra vez às voltas, tal como PJ Harvey. Mas o alvo está perdido, PJ Harvey não. Aquilo que pensamos que a cantora de Dorset é, afinal já é outra coisa. Quando pensamos que já está num síto, afinal já está noutro bem diferente. Aquela pós-grunger de ar descuidado (ver "Dry" e "Rid of Me") pode ser tomada por uma senhora glamourosa (ver "To Bring You My Love") que sabe maquilhar-se melhor que muitas estrelas de cabaret. A criatura misteriosa que nos debita personagens femininos (ver "Is This Desire") é também uma mulher deslumbrada e optimista que adora o seu Eu (ver "Stories from the City, Stories from the Sea"). E quando nos familiarizamos com uma PJ Harvey rebelde pós-punk a berrar aos saltos 'Who the Fuck?' (ver "Uh Huh Her"), surpreendemo-nos por ver no mesmo corpo uma pianista baladeira folk mais moderada (ver "White Chalk").


Que PJ Harvey temos diante de nós em 2011, ao oitavo álbum "Let England Shake"? Também não sabemos bem. À superfície é um PJ Harvey subitamente politizada, a olhar para a sua Inglaterra de trás para a frente a partir da sua casinha de Dorset, mas ainda assim arriscamo-nos a escrever algum disparate. A abstração temporal dos temas das canções é total - do cheiro a trincheiras da I Guerra Mundial aos capitães de outro qualquer século, a temas actuais. Mas é provável que cante a despedida da Inglaterra tal como a conhecemos.

PJ Harvey muda de visual e de som, mas não se afasta do seu conselho de fiés colaboradores, desta vez composto pelos multi-instrumentistas John Parish e Mick Harvey, e pelo produtor Flood, e com o auxílio do menos habitual baterista Jean-Marc Butty. Há um inovador contraponto com a voz masculina - num diálogo com Polly Jean que é uma junção de forças. E samples étnicos e tribais de pedacinhos do mundo à volta da imperial britânica PJ Harvey

Munida de uma autoharpa e de um canto mais antológico, PJ Harvey está num deslumbrante estado de omnipotência vocal, tão folk quanto erudita, enquanto nos vai dando dicas do imaginário de uma Inglaterra rural e victoriana. Podiamos vaticinar-lhe, por isso, uma aproximação estética às puríssimas manas Shirley and Dolly Collins, mas PJ Harvey não é nenhuma Jane Austen do rock. A sua folk fugidia está já demasiado individualizada, e tem o acréscimo de uma bagagem rock (que as Collins nunca tiveram) que faz parte do seu sangue, incluindo neste disco.


Podiamos ainda atrevermo-nos em denunciar uns toques de Cocteau Twins em interpretações mais etéreas como no arrasador 'The Glorious Land' ou em 'Written on the Forehead', mas nem assim acertamos. A dimensão de PJ Harvey não cabe num expositor da mítica 4AD.

O seu rock com cheiro a scones, chá e maresia da costa sul britânica foi palmilhando caminho, possivelmente desde "Is This Desire" (ou talvez mesmo desde "To Bring You My Love"). Até que chegamos a este desarmante disco, que nos mostra uma PJ Harvey virada do avesso, com uma folk virgem, impossível de ser encaixada em qualquer outro modelo que conheçamos.


Este toca e foge é um jeito dylanesco – o homem das canções fok de protesto que era afinal um rocker pró-Beatles que era afinal um countryman anti-festivais que era afinal o quê? Se os guias afunilam todos nas mesmas considerações, cristalizados nalgumas das primeiras imagens que os artistas deles deram (sempre o Blonde on Blonde como obra máxima de Bob Dylan, sempre o Rid of Me como obra máxima de PJ Harvey), a realidade, tal como estes artistas, é mais variável, e ditou que o disco mais majestoso de Dylan fosse feito com 56 anos de idade (Time Out of Mind), ou que o melhor álbum de Polly Jean tivesse sido feito ao fim de 20 anos de carreira (Let England Shake), mesmo que isso já escape às sinopses das suas vidas.

E enquanto a Europa e Inglaterra se desmoronam, PJ Harvey fugiu-nos outra vez, mas já encontrou um rumo. Ninguém a apanha.


Artigo muito semelhante ao publicado no site Cotonete.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Primeiras excitações de 2011


Anna Calvi, Anna Calvi
Não vale a pena armarmo-nos em grandes futurólogos. Apostar em Anna Calvi como promessa de 2011 é como fazer uma tripla no totobola. O seu talento de cantautora rocker é demasiado óbvio, e está muito bem armazenado neste fortíssimo álbum de estreia - "Anna Calvi".

Esta guitarrista inglesa arruivada, de 28 anos de idade e de sangue italiano, arranja-se como se fosse para uma festa de gala ou para um cabaret (este último, um dado denunciador): cabelo puxado, olhos densamente pintados, camisa vermelha de seda.

Só há cinco anos decidiu ser cantora. Seguiram-se seis horas diárias de ensaios de canto.

Neste seu trajecto de combate ao anonimato, 2010 correu-lhe de feição. Brian Eno aclamou-a como «a melhor coisa desde Patti Smith». Nick Cave levou-a para a estrada, para fazer as primeiras partes dos Grinderman - «vais ser enorme», segredou-lhe. Mas o melhor de tudo foi mesmo a gravação em França e Inglaterra deste fervilhante disco, co-produzido por Rob Ellis (multi-instrumentista que tem trabalhado com PJ Harvey).


"Anna Calvi" é uma manta dourada de 10 temas vulcânicos que distinguem a sua autora pela sua capacidade dramática muito acima da média. O disco tem a fúria colérica da PJ Harvey dos primeiros tempos, uma garra selvagem na guitarra que Legendary Tigerman não desdenharia, um cheiro aperfumado de cabaret, uns rebuscamentos fantasmagóricos de um tempo que não vivemos nas primeiras décadas do século passado e, acma de tudo, um toque de cantora lírica raro no mundo do pop-rock. Tal como Florence and the Machine, Anna Calvi transforma o exagero numa qualidade.

Posto de outra forma, imaginem os Goldfrapp que foram gravar "Feltmountain" (na sua fase mais rupestre) como uma banda pós-punk e sem recursos electrónicos, e talvez nos aproximamos do imaginário em que respira o power trio comandado por Anna Calvi.

O resto, que é quase tudo, será a forte personalidade de Anna Calvi a moldar. Para já, tem um clássico do rock logo à primeira tentativa: "Anna Calvi". (Domino, 2011)
Artigo muito semelhante ao assinado para o Cotonete.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Melhores Concertos 2010

Dos que vi...
1º Chris Isaak no Cascais CoolJazzFest


2º Camané no Centro Cultural de Belém
3º Faith No More no Optimus Alive!
4º The xx na Aula Magna
5º Mão Morta no Coliseu dos Recreios


6º Walkmen no Coliseu dos Recreios
7º Black Rebel Motorcycle Club na Aula Magna
8º Wovenhand no Santiago Alquimista
9º MGMT no Campo Pequeno
10º Sérgio Godinho na Culturgest

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Melhores Álbuns Nacionais 2010


1º Pop dell’ Arte – Contra Mundum

2º Camané – Do Amor e dos Dias
3º Mão Morta – Pesadelos em Peluche
4º Mazgani – Song of Distance
5º Guta Naki - Guta Naki


6º Maria de Medeiros – Penínsulas & Continentes
7º Tiago Guillul – V
8º Nu Soul Family – Never Too Late to Dance
9º B Fachada – Há Festa na Mouradia
10º Terrakota - World Massala

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Melhores Álbuns Internacionais 2010


1º Midlake – The Courage of Others

2º Sufjan Stevens – Age of Adz
3º Gil Scott-Heron – I’m New Here
4º Laura Veirs – July Flame
5º Arcade Fire – The Suburbs


6º Afrocubism – Afrocubism
7º MGMT - Congratulations
8º John Grant – Queen of Denmark
9º Trembling Bells – Abandoned Love
10º Vampire Weekend - Contra

11º Ice Cube – I Am the West
12º Erland and the Carnival - Erland and the Carnival
13º Neil Young – Le Noise
14º !!! – Strange Weather, Isn’t It?
15º Elvis Costello – National Ransom


16º Janelle Monáe – The ArchAndroid
17º Joanna Newsom – Have One on Me
18º Black Rebel Motorcycle Club – Beat the Devil’s Tatoo
19º Sharon Jones & The Dap Kings – I Learned the Hard Way
20º Warpaint – The Fool

21º Christina Aguilera -Bionic
22º Women – Public Strain
23º The National – High Violet
24º Willie Nelson – Country Music
25º Emily Jane White – Victorian America


26º Manic Street Preachers – Postcards from a Young Man
27º Deer Tick – The Black Dirt Sessions
28º Yeasayer - Odd Blood
29º Jenny and Johnny – I’m Having Fun Now
30º Rumer – Seasons of My Soul

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

ARCADE FIRE, «THE SUBURBS»

Os Arcade Fire chegaram depressa ao topo da pirâmide indie (e talvez mesmo do rock geral) com dois álbuns consideravelmente diferentes. Comparar "Funeral" (a estreia de arromba) com "Neon Bible" (o difícil segundo álbum) é o mesmo que sentir a diferença entre um passeio pela Serra do Gerês e uma travessia do Alentejo. "Funeral" é deslumbrantemente alpino e fragmentado, dando-nos os mais variados cenários a cada curva e contracurva; "Neon Bible" é mais plano, com cada música a reproduzir a mesma paisagem do início ao fim - excepção a 'Black Wave/Bad Vibrations', o 'A Day in the Life' dos Arcade Fire, que sofre a meio um corte abrupto do tamanho de um eclipse solar total.

Sem que, aparentemente, o novo álbum "The Suburbs" tenha a mesma mina de oiro de "Funeral" ou, até, de "Neon Bible", os Arcade Fire dão a volta de outra maneira, apostando numa maior magnitude, tornando-se ainda mais hercúleos do que já eram. O ideal épico do grupo encontra plataforma num álbum mais duradoiro (16 faixas), mais difícil; e, contrariando os ditados populares, a quantidade leva-os a uma maior qualidade.

À superficície do enorme recheio de "The Suburbs" está uma energia adolescente ainda imaculada que dá a sensação de que os vários anos de sucesso e de vida mais adulta ainda não amoleceram os Arcade Fire - como 'Ready to Start', 'Modern Man', 'Empty Room' ou 'Month of May' ilustram. E há a ilusão deste ser um álbum mais eletropop que os demais, graças a maravilhas como 'Ready to Start' ou a penúltima faixa 'Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)' que aproxima Régine Chassagne cada vez mais a Jill Birt, a menina dos teclados dos Triffids que também fazia vozes.


Mas por trás da superfície e da ilusão, "The Suburbs" é, na substância, um álbum de baladas, talvez o grande álbum de baladas dos Arcade Fire. O tom do disco é mais contemplativo e cinematográfico, com o fantasma intermitente de Bruce Springsteen à flor da pele. Com maior ou menor dramatismo barroco, 'Rococo', 'Half Light I', 'Wasted Hours' ou 'Deep Blue' (podemos citar mais) são músicas ternurentas que fazem a diferença: em qualquer contexto, em qualquer discografia.

Outro dado agradável reside na orgânica do grupo, onde a liderança de Win Butler, sempre muito espiritual, dá espaço em três ou quatro músicas para a sua companheira Régine Chassagne fazer sobressair as suas tropelias. Claro que "The Suburbs" tira partido destes momentos de feminilidade, invertendo-se aquela lógica sufocante de comandos tirânicos que condenam bandas de eleição (como os Pixies ou os Smashing Pumpkins) a prazos curtos de vida.

«Uma mistura entre Depeche Mode e Neil Young», é assim que os autores definem o novo álbum. De corpo sonoro pop-rockeiro, a alma do grupo parece procurar em fundo outra coisa, algo mais folk e, quem sabe, mais country... Os Arcade Fire acabam de dar um grande passo adiante e já vêem o futuro à frente. (Merge, 2010)


Artigo publicado no Cotonete que pode ler aqui.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Reportagem em Benicàssim: post-scriptum


O Festival Internacional de Benicàssim (FIB) é internacionalíssimo: grande parte da massa festivaleira é britânica. Junta-se o conceito veraneante de praias e piscinas à paixão pela música e à disposição festivaleira, e isso também explica a adesão numerosa de forasteiros.

Apesar da presença de um total de 150 mil festivaleiros nos quatro dias, o conforto é jamais posto em causa. É a tranquilidade da estância balnear que se projecta no conceito do festival e não o contrário. A avalancha de pessoas dissipa-se no calcorreamento pela cidade de Benicássim: não há restaurantes, nem praias sobrelotadas; não há engarrafamentos, nem ruas atafulhadas de carros. E no entanto o recinto está colado à maneirinha terra, fazendo do conceito veraneante do FIB uma realidade: das praias ao recinto do mega-evento são necessários pouco mais que 10 minutos a pé; e, a meio do trajecto, há as numerosas piscinas de hóteis, cujos relvados limítrofes estão povoados por festivaleiros de pulseirinhas a dormirem as sestas ou a beberem refrescos depois dos agradáveis banhos.

Por isso, não surpreende que o festivaleiro do FIB ande de calções de banho e tronco nu ou de biquini, mesmo a altas horas da madrugada - estiveram temperaturas quentes e noites tropicais durante os quatro dias do festival. A informalidade prolonga-se à menor austeridade numa série de pormenores: pessoas concentradas num monte fora do recinto que dava visibilidade para o palco principal sem que as autoridades interviessem; fácil acesso dos jornalistas ao backstage dos artistas; umas quantas espreguiçadeiras e até uma piscina na zona VIP.

O cenário que rodeava o recinto era deslumbrante, ao lado de montanhas lindísssimas (semelhantes às que se vêem na Califórnia); e com o mar muito azul do outro lado do horizonte. E o próprio piso era simpático para quem andava de havaianas ou com outro tipo de sandálias: várias zonas de terra de areia escura e de pedrinhas; largas porções de relvado; algum trajectos em alcatrão; nada de pó.

O ambiente de Benicàssim é mais festivo do que estamos habituados. Há uma exuberância maior dos festivaleiros (e até algum exibicionismo.. vários homens nus a erguerem-se no meio da multidão e, pelo que vimos, uma mulher de peito desnudado à frente de um dos palcos). A atitude chega a ser carnavalesca, com muitas pessoas literalmente mascaradas: toureiros, super-heróis, dois amigos com o equipamento completo da selecção espanhola (da camisola vermelha às botas) e muita gente pintada ou maquilhada. No entanto, há também um excesso de consumo de álcool e de drogas (mais que em Portugal), muitas gente KO prematuramente (muito mais que em Portugal) e, nos casos mais extremos, consumo à descarada de cocaína.

A nível de comércio dentro do recinto, é possível encontrar as barraquinhas de comes e bebes tradicionais que desapareceram há anos dos recintos dos nossos maiores festivais: as mais espanholas vendiam espetadas, paelhas ou bebidas de cidra locais; uma argentina tinha a boa carne do país; outra banca era mais especializada em bebidas latino-americanas como os cubanos mujitos; mas havia mais.

O FIB aconteceu no fim-de-semana seguinte ao da consagração da selecção espanhola como campeã mundial. E por essa razão, não faltou quem desse os parabéns, como os americanos Julian Casablancas e os Vampire Weekend, e os britânicos Mumford & Sons, Ian McCulloch (dos Echo & The Bunnymen) e Damon Albarn (dos Gorillaz).

Para o ano, há mais. É o que devem desejar todos os festivaleiros do FIB. Percebemos porquê.



Fotos: Joana Baptista
Artigo publicado no site Cotonete.