quinta-feira, 22 de julho de 2010

Reportagem em Benicàssim: post-scriptum


O Festival Internacional de Benicàssim (FIB) é internacionalíssimo: grande parte da massa festivaleira é britânica. Junta-se o conceito veraneante de praias e piscinas à paixão pela música e à disposição festivaleira, e isso também explica a adesão numerosa de forasteiros.

Apesar da presença de um total de 150 mil festivaleiros nos quatro dias, o conforto é jamais posto em causa. É a tranquilidade da estância balnear que se projecta no conceito do festival e não o contrário. A avalancha de pessoas dissipa-se no calcorreamento pela cidade de Benicássim: não há restaurantes, nem praias sobrelotadas; não há engarrafamentos, nem ruas atafulhadas de carros. E no entanto o recinto está colado à maneirinha terra, fazendo do conceito veraneante do FIB uma realidade: das praias ao recinto do mega-evento são necessários pouco mais que 10 minutos a pé; e, a meio do trajecto, há as numerosas piscinas de hóteis, cujos relvados limítrofes estão povoados por festivaleiros de pulseirinhas a dormirem as sestas ou a beberem refrescos depois dos agradáveis banhos.

Por isso, não surpreende que o festivaleiro do FIB ande de calções de banho e tronco nu ou de biquini, mesmo a altas horas da madrugada - estiveram temperaturas quentes e noites tropicais durante os quatro dias do festival. A informalidade prolonga-se à menor austeridade numa série de pormenores: pessoas concentradas num monte fora do recinto que dava visibilidade para o palco principal sem que as autoridades interviessem; fácil acesso dos jornalistas ao backstage dos artistas; umas quantas espreguiçadeiras e até uma piscina na zona VIP.

O cenário que rodeava o recinto era deslumbrante, ao lado de montanhas lindísssimas (semelhantes às que se vêem na Califórnia); e com o mar muito azul do outro lado do horizonte. E o próprio piso era simpático para quem andava de havaianas ou com outro tipo de sandálias: várias zonas de terra de areia escura e de pedrinhas; largas porções de relvado; algum trajectos em alcatrão; nada de pó.

O ambiente de Benicàssim é mais festivo do que estamos habituados. Há uma exuberância maior dos festivaleiros (e até algum exibicionismo.. vários homens nus a erguerem-se no meio da multidão e, pelo que vimos, uma mulher de peito desnudado à frente de um dos palcos). A atitude chega a ser carnavalesca, com muitas pessoas literalmente mascaradas: toureiros, super-heróis, dois amigos com o equipamento completo da selecção espanhola (da camisola vermelha às botas) e muita gente pintada ou maquilhada. No entanto, há também um excesso de consumo de álcool e de drogas (mais que em Portugal), muitas gente KO prematuramente (muito mais que em Portugal) e, nos casos mais extremos, consumo à descarada de cocaína.

A nível de comércio dentro do recinto, é possível encontrar as barraquinhas de comes e bebes tradicionais que desapareceram há anos dos recintos dos nossos maiores festivais: as mais espanholas vendiam espetadas, paelhas ou bebidas de cidra locais; uma argentina tinha a boa carne do país; outra banca era mais especializada em bebidas latino-americanas como os cubanos mujitos; mas havia mais.

O FIB aconteceu no fim-de-semana seguinte ao da consagração da selecção espanhola como campeã mundial. E por essa razão, não faltou quem desse os parabéns, como os americanos Julian Casablancas e os Vampire Weekend, e os britânicos Mumford & Sons, Ian McCulloch (dos Echo & The Bunnymen) e Damon Albarn (dos Gorillaz).

Para o ano, há mais. É o que devem desejar todos os festivaleiros do FIB. Percebemos porquê.



Fotos: Joana Baptista
Artigo publicado no site Cotonete.

Reportagem em Benicàssim: quarto e último dia


O Festival Internacional de Benicàssim (FIB) - que tão bem faz do banhista um melómano e vice-versa - encerrou ontem com o espectáculo poderoso dos Gorillaz, sob a aura da megalomania de um concerto que podia ser de estádio. Muita coisa mudou no conceito ao vivo do projecto de Damon Albarn desde a única passagem dos Gorillaz por Portugal (em 2002). Os músicos já não se escondem por trás de um enorme pano gigante transformado em ecrã; expõem-se hoje tanto como qualquer outra banda; e a banda desenhada de 3D, Murdoc e companhia já não é o exclusivo dos clips do ecrã gigante agora alojado alguns metros acima dos instrumentistas.


Damon Albarn (na foto) está bem mais humilde que aquele Damon Albarn ao serviço dos Blur da fase áurea do brit-pop. É ele o simpático (!) comandante deste filme musical tão caro, saltando várias vezes dos teclados para a zona da frente do palco, pulando, rappando, cantando e espalhando água para cima da multidão. Ainda por cima, pode, através dos Gorillaz, comprar a história: tem na sua banda ao vivo os ex-membros dos Clash, Mick Jones (na guitarra) e Paul Simonon (no baixo); e conta com os préstimos vocais da lenda de soul/blues Bobby Womack. Torna-se também num mecenas que aposta em talentos mais desconhecidos como a cantora nipo-sueca Yukimi Nagano (dos Little Dragon).

O espectáculo dos Gorillaz no FIB é um carrossel multicultural. Tanto pode projectar imagens da dança de ventre arábica, caracteres japoneses ou o clip oficial de Stylo que tem Bruce Willis como protagonista de uma perseguição de carros com os companheiros de Murdoc. Tanto passa por duelos entre rappers (com Damon Albarn sempre com uma palavra a dizer), como pela balada mais ambiental à Brian Eno (On a Melancholy Hill) ou mais bluesy (Cloud of Unknowing)... Sempre com a palavra festa na mira. Este foi o maior e um dos melhores concertos do festival.


O antecessor dos Gorillaz no palco principal (Escenario Verde) foi Dizzee Rascal, que continua um rapper velocista (talvez mesmo um recordista do Guiness nesse campo). Com uma camisola e um chapéu (com pala para trás) dos Los Angeles Lakers, pode já não ter a autenticidade revolucionária de há cerca de cinco anos. Mas Rascal prova ser mais que o cromo nº1 do grime; pode também ser um ídolo de festival no palco maior. Noutro palco, os Echo & The Bunnymen iam galgando pelo seu historial de pós-punk poético - ­Seven Seas, The Killing Moon ou The Cutter foram tocadas. Nem mesmo o ar veraneante de Benicàssim convence Ian McCulloch a prescindir do seu ar invernoso, envergando um comprido casaco e exibindo aquele ar soturno de óculos escuros e cigarro na mão que é um bónus charmoso a uma colheita cancioneira que continua a ser memorável. Mas será que os Echo & The Bunnymen já deixaram de acreditar nas suas canções mais recentes?, é a pergunta que esta actuação levanta.

Algum tempo antes, no mesmo palco secundário (Escenario Fiberfib.com), os Foals impressionaram com um indie-rock que é uma metralhadora de acordes de guitarra múltiplos num curto espaço de tempo que, quando acalma, roça o ambiente de dream-pop dos Sigur Rós.

«Olá, sou a Ellie Goulding; temo não chamar-me Lily Allen». Foi assim que Ellie Goulding brincou com a promoção em cima da hora para substituir Allen (de baixa por motivos de doença) no palco principal. Não acusou a responsabilidade; também gosta de ter um bombo de bateria junto ao microfone para aumentar o dramatismo da perfomance. Mas parece uma intérprete de um folk-pop sucedâneo, algures entre Florence and the Machine e The Corrs.

Foto: Joana Baptista
Artigo publicado no Cotonete.

Reportagem em Benicàssim: terceiro dia

O sábado esteve entregue às grandes lendas britânicas do passado, mesmo que oriundas de períodos diferentes: The Specials, PIL, Ian Brown (na foto), Prodigy. E lendas do passado é o que se poderia também chamar aos Ash que foram o primeiro nome forte do dia. Com uma actuação enérgica (dir-se-ia esforçada), agraciada por hinos dos anos 90 como Oh Yeah e Girl from Mars que fizeram deles uma alternativa mais rockeira ao britpop, os Ash parecem numa luta perdida contra o tempo. A crise de crescimento e a inexistência de qualquer mudança pouco lhes dá mais ao fim destes anos todos que a irrelevância de uma actuação vespertina que passou despercebida. Com o tempo de hoje a seu favor estão os Cribs que logo a seguir, num dos palcos secundários, aproveitaram a onda de entusiasmo em relação ao seu último álbum Ignore the Ignorant para agitar a maré de gente com o seu rock pós-punk assente nalgum classicismo - e, recorde-se, com o guitarrista ex-Smiths Johnny Marr na formação.

Quem não esteve à altura da adesão popular foram os Specials que, contrariando a disposição festiva e dançante da multidão, nos deram uma actuação morna mesmo que pontuada por temas populares como Monkey Man e A Message to You Rudy. A disposição desinteressada do principal vocalista destes dinossauros do ska, Terry Hall, retira consistência a um concerto que se queria de espírito anímico. A inexistência de encore (e havia condições para tal), e do pedido Ghost Town, é o final desajeitado de um concerto que devia ter sido melhor. O verdadeiro Monkey Man foi mesmo Ian Brown que se mantém fiel aos seus gestos símios e ao fotogénico levantamento no ar da sua pandeireta numa bonita imagem de auto-glorificação. Como acontecia nos Stone Roses, o hino I Wanna Be Adored abriu o concerto (tocado em câmara lenta, tal como aconteceu na actuação desastrosa da extinta banda em Vilar de Mouros). Depois bastou picar nos mais electrónicos temas a solo para provar que, das lendas da noite de ontem, o pouco saudosista Ian Brown é quem está em melhor forma no novo milénio.

«Ali está a feira dos tolos», aponta John Lydon para o que se está a passar no concerto dos Prodigy. Três músicas mais tarde, novo missil para as estrelas do palco principal: «há um estranho ambiente no ar, deve ser aquela porcaria ali ao fundo. Os falsos lá vão aparecendo e imitando». O pouco ortodoxo vocalista dos Public Image Ltd (e dos Sex Pistols) continua com a língua solta. Esse mau feitio continua a ser o nervo que faz dele uma autêntica fera enquanto performer, movimentando-se freneticamente na zona do microfone, e incendiando uma actuação que, mesmo que nostálgica, ilustra o poderio mono-rítmico pós-punk e obstinado dos PIL (na mesma linha de uns Wire). Os Prodigy lá iam dando a razão a John Lydon, com o seu circo de techno-punk que cristalizou há mais de 10 anos nos mesmos movimentos, nas mesmas provocações e nos mesmos temas. A verdade é que a maior moldura humana do festival foi mesmo para o colectivo do excêntrico dançarino das cristas Keith Flint.


Já com a madrugada adiantada, o electro-pop veraneante da canção Lights & Music assenta que nem uma luva no ambiente do festival e ajudou a projectar o concerto dos Cut Copy desde o início para a celebração, mesmo que ao vivo percam demasiado a perfeição de estúdio. E, noutro ponto, os mascarados Klaxons souberam encerrar muito bem o programa do palco principal com um synth-rock pouco dado a revisionismos estéticos.

Artigo publicado no site Cotonete.

Reportagem em Benicàssim: segundo dia

O segundo dia do Festival Internacional de Benicàssim correu, e bem, ao sabor do electro-pop. E nesse campo houve um grupo que se distinguiu: os Hot Chip. Ao contrário do que é apanágio dentro do nicho, o colectivo londrino nega qualquer compromisso desenvergonhado com os anos 80. Através de uma performance muito dançada, e com todos os seus membros a distribuirem-se numa placa giratória multi-instrumentista, os Hot Chip empunharam os seus temas mais célebres, num cruzamento neo-milenar improvável entre Kraftwerk e Gang of Four (embora a milhas de ambos, a milhas de tudo). Mostraram serviço notável, mesmo que com a concorrência de alguns exibicionistas nus que se erguiam acima do imenso mar de cabeças da assistência.


Antes, também pelo palco principal (Escenario Verde), esteve Julian Casablancas, com uma banda mais numerosa que os seus Strokes (o vocalista está a ser acompanhado por mais seis instrumentistas). Quem o vir no Meco, pode esperar dele uma actuação que vai incluir temas dos Strokes (ouviram-se ontem Reptilia ou Modern Age, entre outros) que não colidem com o formato synth-pop da colheita a solo do álbum Phrazes for the Young que está agora a apresentar. Com um visual de pequenas excentricidades (da madeixa de cabelo oxigenada à unha da mão pintada), Julian Casablancas gracejou com o facto de não falar nada de castelhano, mesmo tendo dois nomes espanhóis (J. Fernando Casablancas). Foi o vocalista nova-iorquino que deu origem à primeira grande mobilização de massas, ao início da noite.

Também em bom plano, e igualmente sob o signo do eletro-pop, estiveram os Goldfrapp num dos palcos secundários (o Escenario Fiberfib.com). A ventoinha do palco simulava um vento que não existia (a noite foi outra vez quente e dispensou camisolas de manga comprida) e levantava no ar o vestido curto e prateado de Alison Goldfrapp, e o ambiente era o de uma viagem aos anos 80 à bruta. Com um alinhamento em regime best of, sobretudo dos últimos tempos (lados-A como Believer, Alive ou Rocket foram escutados), o toque kitsch e abbesco da banda inglesa caiu bem no festival.

Mas o momento de glória do segundo dia coube aos Vampire Weekend (na foto), no Escenario Verde. A cada tema - Cape Cod Kwassa Kwassa, Cousins, A-Punk, Diplomat's Son, Oxford Comma, Horchata (refresco que abunda muito nesta região) ou Mansard Roof - os Vampire Weekend ligavam o turbo e punham a entusiasta multidão a dançar freneticamente. O mexido vocalista Ezra Koenig, que tinha a guitarra viciada nos acordes afro que lembram o Mali (excepção ao electrónico Giving Up the Gun), foi o porta-voz de uma banda que está a marcar uma época e que está a conseguir dar o salto para um estatuto de popularidade maior.

Notas elogiosas ainda para a actuação sob sol arrasador do cantautor irlandês Fionn Regan (e para as suas virtudes folk dylanescas), para a adesão dos muitos festivaleiros britânicos em torno dos ascendentes Mumford & Sons (que seguem a melhor tradição da folk inglesa) e para o DJ set de DJ Shadow já a madrugada ia avançada (que mereceu um ecrã em forma de esfera e o melhor do hip hop instrumental).

Artigo publicado no site Cotonete.

Reportagem em Benicàssim: primeiro dia

O festival britânico mais a sul não é afinal na Ilha de Wight mas sim na Comunidade Valenciana, em Espanha. O FIB [Festival Internacional de Benicàssim] Heineken passa praticamente por um festival de britânicos: quer a nível de festivaleiros (claramente em maioria), quer a nível de cartaz (pensado para o gosto dos habitantes da ilha de Sua Majestade), quer agora na organização (que passou pela primeira vez para mãos inglesas).

O festival respira o ambiente veraneante de uma estância balnear como nenhum outro festival em Portugal. O recinto está localizado mesmo junto à povoação -­ do centro de Benicàssim até ao festival bastam 10 minutos a pé. Os festivaleiros ocupam as centenas de piscinas e as agradabilíssimas praias da zona. Mas nem assim o ambiente de serenidade e de conforto da pequena cidade é posto em causa pela moldura humana que enche o recinto uns metros mais acima, junto às deslumbrantes montanhas.

No primeiro dia do festival, o grande nome histórico era sem dúvida Ray Davies, o cérebro dos ingleses Kinks e um dos mais importantes compositores pop-rock dos anos 60. Os clássicos que foi tocando como o rebelde 'You Really Got Me' (que colocou os Kinks imediatamente na ribalta) e o popular 'Lola' mereceram a vénia histórica de uma multidão de compatriotas verdadeiramente transgeracional. A sonoridade da sua exímia banda enquadra Ray Davies muito próximo de Bob Dylan e de Van Morrison (o que não é surpresa) mas percebe-se também através deste concerto que os seus temas mais agrestes foram o prenúncio do punk mais de 10 anos antes.


Mas os mais festejados foram os Kasabian (na foto), que ocuparam o palco principal (Escenario Verde) depois do ex-Kinks. Sem necessitarem de recorrer a discursos inflamados à volta da selecção espanhola campeã mundial de futebol (apesar de publicamente aclamados pelo jogador decisivo Iniesta), os Kasabian injectaram alegria entre o povo com alguns dos seus maiores hinos [como 'Fire' e 'L.S.F. (Lost Souls Forever)'] e com o poderio do seu brit-rock que, quando investe em arranjos mais electrónicos, chega a lembrar a transcendência dos Death in Vegas.

Mas muitos outros actos impressionaram. Sobretudo os Dirty Projectors, que num dos palcos secundários, trouxeram de Brooklyn (Nova Iorque) os benefícios criativos de uma ingenuidade de quem parece estar a descobrir novos sons naquele preciso momento. As guitarras exploratórias do grupo, que vão do lado ensaístico dos Sonic Youth ao bicho carpinteiro dos Vampire Weekend, as danças da teclista Angel Deradoorian e a sincronização entre as três vozes femininas e a masculina num plataforma dessincronizada com a convenção são factores que causam sensação. Para os Dirty Projectors, a canção é um projecto sempre em aberto.


Os Broken Bells (do multi-instrumentista Danger Mouse, dos Gnarls Barkley) fecharam o palco principal com um concerto iniciado às três da madrugada (normal em Espanha), e mostraram o peso orelhudo de uma das melhores colecções de canções do ano, inscritas no seu álbum homónimo. Além do entusiasmo que provocaram entre a populaça (já menos numerosa), 'The Ghost Inside' e 'The High Road' são temas que podem fazer vender anúncios.

Artigo publicado no site Cotonete.